domingo, 9 de junho de 2013

Mega-Sena, sonhos de consumo e lembranças de infância

Há vinte anos atrás, meu sonho era ter trinta anos. Mas que merda de sonho era aquele?!” Declaração de um maluco de estrada

Eu estava almoçando alegremente quando, da mesa ao lado, ouvi uma voz dizendo à outra, com notas sensuais: “olha lá fora, meu sonho de consumo”.

Mesmo sabendo que a conversa não era comigo, não resisti e, discretamente, olhei pela janela: um veloster.

Olhei de novo à procura de uma “porscheta”, uma “ferrarinha” ou uma “lamborgheta”, mas não. O sonho de consumo do meliante era mesmo aquele carrinho que, visto de trás, por algum motivo me lembra um grostoli, e que, apesar de estar fora da minha realidade econômica, nem de longe mereceria o rótulo de “sonho de consumo”. Mas, enfim, cada um com seus “cada uma!”...

Só que os olhos daquele jovem de terninho brilhavam olhando o veloster desfilar lentamente. Foi então que me toquei que nem pra ser ambiciosas as pessoas se esforçam. Vendem a alma ao diabo em horas-extras intermináveis, e não querem mais do que um veloster. Tudo bem desejar um carrinho que custa o absurdo de oitenta mil dinheiros, mas chamar isso de sonho de consumo é exagero. Deve ser coisa de auto estima baixa.

Na verdade eu sempre desconfiei de pessoas que querem saber qual o sonho de consumo dos outros, porque elas não entendem que há pessoas que não têm isso! Aliás, o que ando tendo ultimamente (ou desde os 17 anos) não são sonhos de consumo, mas algo mais para sonhos de desconsumo.

Sabe o que seria legal? Ganhar vários milhões na Mega-Sena e separar uns 100 mil em notas de cinquenta, jogar na churrasqueira, tascar fogo e assar um salsichão. E daqueles bem bagaceiros. Seria “da hora”, como dizem. É claro que eu não queimaria tudo, e que gastaria o resto, mas, em última instância, gastar emocionalmente o dinheiro ganho na Mega-Sena para compensar alguns anos de frustração financeira, dar para caridade, ou queimá-lo na churrasqueira para assar um salsichão são coisas muito parecidas – as três alternativas podem proporcionar um indescritível prazer ao infeliz milionário, e é a isso que viemos, acredite você ou não.

Teoria do terapeuta do Caos:

Felicidade é poder fumar seu tabaco bagaceiro em uma nota de cem dólares (ou comer polenta brustolada no Festiqueijo)

Por falar nisso, vocês viram que o Festiqueijo 2013 vai custar mais de oitenta pilas? Tá de graça, essa bagaça, né? Nem vou falar nada, já disse tudo sobre isso aqui e aqui (é só mudar o ano, que o resto é a mesma coisa). Mas sabem o que também saria legal? Fazer um festival paralelo ao Festiqueijo (e clandestino, obviamente) no melhor estilo desconsumista. Os organizadores percorreriam as colônias em busca daqueles queijos que o pessoal do interior faz e vende na informalidade (esse, aliás, é o VERDADEIRO sabor da serra, se querem saber), a procura também das melhores cachaças produzidas nos porões mais obscuros da zona mais rural, das melhores bolas de pinhão e de uns porquinhos pra fazer os salames. O festival seria animado pelos melhores véios gaiteiros da região (que quase ninguém conhece obviamente) além de atrações alternativas (alternativas de verdade) como as bandas mais underground da serra (que também quase ninguém conhece), enquanto que, do outro lado do salão, ficaria um pessoal responsável por assar os pinhões na chapa e matar os porcos para fazer o salame na hora, ali mesmo, daquele jeito que os colonos sempre fizeram e que constitui a VERDADEIRA cultura da nossa terra. A gente só trairia nossa cultura na questão do preço do ingresso, mantendo um padrão de lucro zero-prejuízo mínimo, já que tudo seria doado pelas pessoas interessadas em fazer uma festa de verdade.

-><-

Este texto inócuo não foi escrito de uma só vez (ninguém tem tempo pra isso). Antes de terminar essa coisa, num outro dia enquanto eu, novamente, almoçava alegremente, voltei a ouvir as vozes (que agora já não sei se vinham da outra mesa ou da minha cabeça) que comentavam sobre a ansiedade de participar do nosso Festiqueijo, que “ia ser muito legal”, etc. Uns gostavam do evento, outros nem tanto. Novamente olhei pela janela do restaurante, como fiz da outra vez (procurando o “sonho de consumo” daquele desconhecido) e pude avistar a entrada do Salão Paroquial (o local onde tradicionalmente ocorre o Festiqueijo). Não pude deixar de lembrar das primeiras edições do evento, quando íamos com a família naquela festa bonita. Lembrei da primeira vez que ganhei “permissão” de ir ao Festiqueijo sozinho - sob as recomendações do pai de “só tomar guaraná” e dos avisos da mãe de “se encontrar a dinda avisa que os crochês estão prontos”. E nós, os garotos dos anos 80, entrávamos, bebíamos o guaraná, entregávamos o recado à dinda... Mas, acima de tudo, encontrávamos amores e amigos que hoje não existem mais, numa festa que não existe mais.

E tive a impressão de que, apesar de tudo, os desconhecidos da mesa ao lado eram animados pelo mesmo espírito que animara uma criança qualquer há 20 anos atrás. A perspectiva de uma simples festa lhes trazia uma alegria ingênua, mas genuína. Se assim fosse, a festa não seria de todo ruim, afinal, as pessoas estavam se permitindo ter sentimentos que hoje estão à beira da proibição, estavam dispostas a se entregar às mãos da inocência e dos instintos puros por algumas horas, a reencontrar amores e amigos de vinte anos atrás com o sorriso de uma criança que esquece o erro do amiguinho e desconhece os podres da vida. Naquele instante eu pensei que ia fazer as pazes com muita coisa do presente e do passado. Eu ia fazer as pazes...

...só que o veloster passou outra vez, lentamente. E todos voltaram a falar de sonhos de consumo e de como ainda tinham muito trabalho pela frente. 

Terminei o copo de suco, passei o guardanapo nos lábios e saí sem comer a sobremesa.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Perturbe a ordem. Comente!