Provérbio facebookiano
A recente decisão do STF sobre o aborto de fetos anencéfalos é
motivo para fogos de artifício. Só não os solto porque esse gasto
não estava previsto no meu orçamento. Explico (o motivo da festa,
não o meu orçamento): a opção por interromper uma gestação é
(ou deveria ser) uma decisão exclusiva das mulheres que se encontram
nessa situação porque a elas compete dar continuidade ou não a uma
coisa que está acontecendo dentro dos seus próprios corpos. Negar à
mulher essa autoridade sobre o seu corpo é nada mais do que
restringir-lhe a liberdade. Ou melhor: é nada mais do que continuar
a restringir a sua liberdade. Engana-se o leitor que pensa que os
tempos de opressão feminina perderam-se num passado medieval. Eles
persistem.
Repare que a maioria dos líderes religiosos (que, sem exceção,
são contrários ao aborto sob quaisquer pretextos) são homens.
Repare, ainda, que os líderes da maioria dos movimentos antiaborto
são homens. Repare, enfim, que homens não engravidam. Isso seria o bastante para encerrar a discussão. Mas vamos além.
Eu disse que a opressão persiste. Não pensem que o assunto acabou
depois do auê sobre um certo Rafinha Bastos que fazia piadas sobre
mulheres estupradas e que queria comer não sei quem com feto e tudo,
pois a moda continua (com menos alarde, já que agora o “humorista”
aprendeu a não citar nomes): segundo esses reacionários (num
disparate proferido antes ou depois do caso Vanessa, não lembro) as
mulheres não deveriam sequer amamentar em público. Seria feio,
nojento, etc., a não ser que fossem gostosas. Quer discurso mais
sexista? Agora, além de tudo, os homens escolhem quem pode mostrar
os seios e quem deve escondê-los.
- Ah, mas é só um programa de humor...
Não. Não é só um programa de humor. É a reprodução constante
e sistemática de um discurso que não é de hoje. O humor é uma
arma e uma ferramenta perigosa. Disfarçado sob o manto de humorista
e protegido pelas gargalhadas de uma plateia desatenta é possível
professar páginas e páginas de um Mein Kampf de absurdos sem que
ninguém perceba o que está acontecendo.
Da
mesma fora, protegido por um belo terno e acompanhado de cânticos,
améns e aleluias, é possível declamar a mesma poesia (numa edição
mais antiga, talvez) sem que ninguém note a semelhança. E lá se
vai a mulher,
de cabeça baixa, fazer o que lhe é ordenado: servir aos homens,
parir seus herdeiros, amamentá-los às escondidas (a menos que os
seios sejam agradáveis à lascívia masculina) e fazer coro às
regras que atravessam a história - todas ditadas por homens. É o
poder da esposa que ora.
Por
isso a decisão do STF deve ser comemorada. É um passo a mais em
direção à liberdade, sobretudo a das mulheres. Feministas do mundo
inteiro, comemorai! O estado mostrou que continua sendo laico, a despeito de símbolos
religiosos pendurados em repartições públicas (dos males, o
menor). Um avanço, sem dúvida. Há,
entretanto, quem tem a esperança de que o Congresso reverta a
decisão do STF. Bem, se isso ocorrer, talvez seja o caso de trocar
os bandeiraços por manifestações a base de coquetel molotov.
Talvez. No dia em que o Congresso questionar uma posição como esta
– a de não obrigar uma mulher a levar a cabo a gestação de um corpo sem cérebro -
não estaremos longe de virar uma república fundamentalista cristã,
como alguém já profetizou por aí. Nada contra cristãos em
particular. Só contra o fundamentalismo.
A questão não é preservar o direito à vida (vida de um
grupamento celular sem consciência), mas preservar o direito de as
pessoas decidirem pelo que pode ou não acontecer dentro de seus
próprios corpos. Digam o que quiserem, mas enquanto estiver dentro
da barriga de uma gestante, o que quer que lá esteja, só deveria
permanecer lá com o consentimento da mulher. Depois que essa
criatura tiver nascido, sob amor e vontade da mãe, defenderei o
direito dela viver como defenderei o de qualquer outra pessoa. Mas não antes. Quem
vive pregando que não temos o direito de “tirar vidas” esquece
que temos o dever de diminuir o sofrimento. Esquece que às vezes o
estuprador (como um deus) também dá e tira vidas. Esquece que uma gravidez de
risco coloca duas vidas a perder. Esquece que um feto anencéfalo não
é um ser humano senão na aparência.
Dar às mulheres o justo direito de decidir sobre o que pode ou não acontecer dentro delas mesmas não vai transformar o mundo num matadouro
de crianças. Maternidade é um direito, não um dever. Quem é
contrário ao aborto em casos de estupro, risco de vida e anencefalia
continuará tendo o direito de levar adiante a sua própria gravidez quando se
encontrar numa situação semelhante - mas não pode obrigar as
outras pessoas a fazer o mesmo.
Somos seres humanos. Faz mais de 200 mil anos que nosso cérebro
deixou de ter apenas a função de dizer ao estômago quando agir.
Hoje ele serve também para decorar telefones de clientes e fornecedores. No entanto, talvez a sua maior função seja a de nos tornar humanos - os queridinhos da criação - esses bichos estranhos que falam de amor.
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