terça-feira, 5 de julho de 2011

A voz do Sol

Erasmo, o catador de latinhas, costumava deleitar-se olhando as estrelas e adivinhando mundos desconhecidos. Gostava de acreditar que, em algum lugar lá em cima, pessoas como ele também estariam contemplando o céu e adivinhando mundos; e ria quando imaginava que pudesse existir um outro Erasmo, catador de latinhas, morando numa daquelas estrelas e levando uma vida igual a dele, como se o universo fosse um grande lago, onde a parte de baixo fosse o reflexo da parte de cima.
Na verdade, Erasmo só parava de pensar nessas coisas quando sentia a necessidade de pensar em como sobreviver. Numa dessas ocasiões ouviu alguns amigos afirmarem que na universidade as pessoas bebiam muita Coca-Cola, tratando-se, portanto, de um mercado inexplorado. Além disso, ouviu dizer que lá não havia concorrência na catação das latas e que as lixeiras costumavam ser limpas, contendo, no máximo (além das latinhas) papel e embalagens de cigarros vazias. Não precisaria, portanto, sujar as mãos em lixeiras ancestrais que poderiam conter, talvez, até a própria matéria primordial (aquela a que os alquimistas se referiam) usada por Deus para fazer as estrelas.
Não demorou a entrar em ação. Catou seus sacos e seu carrinho com rodas tortas de bicicletas órfãs e desceu a ladeira em direção ao campus (sempre que ouvia alguém pronunciar essa palavra, lembrava do cemitério. Tinha a imprecisa certeza de que, há muitos anos, ouvira alguém chamar o cemitério de campo, ou campus, ou algo assim, santo).
Lembrava-se da sua infância enquanto descia a ladeira suavemente. Pensava nos mortos que já vira entrar no cemitério, transportados em carrinhos semelhantes ao seu. Imaginou-se descendo a ladeira com um carrinho daqueles, carregando um defunto. Depois, vislumbrou-se no caixão, sendo conduzido ladeira abaixo pela estátua nua da praça. Riu.

A universidade, no domingo, era pouco movimentada. Logo que chegou, Erasmo tratou imediatamente de procurar pelas lixeiras de plástico afim de localizar o precioso material. Na verdade havia muitas lixeiras, mais do que no centro da cidade. Mas havia poucas latinhas. Talvez o caminhão do lixo houvesse passado antes dele, na sexta ou no sábado.
Estando longe da sua casa, decidiu ficar por ali, até segunda ou terça-feira. Fez o que sabia fazer: sentou-se num canto de modo a não incomodar ninguém (sobretudo os homens de azul que já lançavam olhares escorregadios) e cobriu-se com uns trapos. Ficou ali, entregue às estrelas que ele tanto conhecia e admirava.
Dormiu e acordou na segunda-feira, já perto da hora do almoço. Retirou de uma de suas sacolas plásticas a refeição previamente preparada por sua irmã, que deveria estar pelas bandas da linha férrea, onde havia fábricas e muitas caixas de papelão. Ambos sabiam que era preciso explorar lugares novos (que seriam, necessariamente, encontrados debaixo deste sol), e que isso poderia demorar um tempo. De qualquer forma, sabia que ela conseguia mais dinheiro prestando serviços aos operários na saída das fábricas do que catando papel. Mas isso não o incomodava. Havia comida para mais de um dia (se fosse preciso) e água nunca lhe faltava. Ele a buscava numa torneira qualquer. Erasmo sabia que onde havia um gramado bem cuidado havia uma torneira. Como no cemitério. Por precaução sempre trazia uma garrafa presa na lateral do carrinho, a qual aproveitava para abastecer sempre que encontrava uma torneira à deriva.
No campus, tinha medo de se aproximar do lugar onde havia mais pessoas. Ele sabia que não era bem-vindo nesses espaços com gente diferente comendo em mesinhas redondas colocadas em grandes espaços coletivos. Ao mesmo tempo tinha a impressão de que essa gente diferente também tinha medo dele. Mesmo assim, a universidade passou a fazer parte do roteiro de Erasmo, que a visitava de tempos em tempos, mais pela facilidade em descer a ladeira do que pela quantidade de alumínio coletado.

De fato já havia percebido que ali, diferente do que ouvira falar, as pessoas não consumiam tanta Coca-Cola. Não mais do que em qualquer outro lugar e até menos do que na estação rodoviária. Entretanto, uma coisa era certa: não havia concorrência. Erasmo, até agora, era o único catador de latinhas a se aproximar do campus, se bem que ele próprio reconhecia que jamais se aproximara dos locais onde circulavam os homens de azul. Sabia, ou melhor, sentia que aqueles homens não permitiriam que ele se aproximasse demais. Para não perder a viagem, limitava-se a coletar as escassas latinhas depositadas nas lixeiras do estacionamento. Sempre nos horários de menos movimentação. Nunca aos domingos. O caminhão não deixava nada para os domingos.

***

Certo dia, posterior à noite em que trocaram a água de sua garrafa por cachaça, Erasmo amanheceu cheio de coragem e enveredou em direção à praça de alimentação do campus. Sem medo e sem documentos. Quando percebeu que um dos seguranças corria em sua direção, abandonou o carrinho e, munido apenas de uma sacola, pôs-se a correr também. Sabia que não chegaria até as lixeiras e, por isso mesmo, já antecipava o momento em que  o homem de azul chegaria para xingar a sua mãe de puta e arrastá-lo para fora dali. Mas seguiu, corajoso.
Conforme o previsto, sentiu o homem chegar e segurar seu braço fazendo-o parar. Mas não ouviu o xingamento, pois quando o segurança abriu a boca, ao invés de impropérios e saliva, saíram apenas raios de luz. Muita luz, como o farol de uma motocicleta que estava prestes a atropelá-lo. Olhou ao redor e, iniciado o tumulto, percebeu que as demais pessoas também emitiam luz pela boca no lugar de palavras. E as luzes saiam e iluminavam lixeiras, paredes, chão, vitrines, e os rostos pálidos das outras pessoas, projetando sombras e imagens. Imagens às vezes sujas e feias, às vezes complacentes. Imagens indignadas e indignantes nas quais, muitas vezes, ele se reconhecia.
As pessoas não pronunciavam palavras -- projetavam imagens.
No momento em que Erasmo não pôde mais suportar o medo e gritou, todas as luzes de todas as bocas se apagaram. Ouviu, então, o seu próprio coração e não pôde deixar de sentir um cheiro que o fazia lembrar-se de um livrinho de alquimia que encontrara, há anos, na lixeira de perto da igreja. Cheiro de livro antigo que o padre velho recolhera do inocente coroinha e atirara ao lixo com repulsa. Era o cheiro da roupa do homem de azul que o prendia pelo braço.
Antes de ser também ele jogado para fora dali, Erasmo pensou em justificar-se (afinal, não queria incomodar ninguém) dizendo que precisava de latas de alumínio para vender na cooperativa de reciclagem. Achou também que deveria pronunciar a palavra “desenvolvimentossustentável” (cujo significado ele desconhecia, mas que fascinava as pessoas instruídas). Com um esforço gaguejante, abriu a boca que tremia de medo e pronunciou o primeiro fonema. O segundo. O terceiro. Pronunciou a primeira palavra. A segunda. Parou.
Ninguém parecia compreender o que ele queria dizer. A multidão se entreolhou e, pouco a pouco, pequenos fachos de luz voltaram a sair das bocas das pessoas. O coletor de latinhas fechou os olhos antevendo o conforto de um desmaio, mas não houve escuridão. Mesmo de olhos fechados Erasmo conseguia ver os pequenos raios luminosos que saiam das bocas.
Assim, de olhos fechados, ele ficou observando as imagens que as pessoas diziam dele. Uma luz mostrava que a pessoa que a emitiu estava com medo. Outra mostrava angústia. As luzes das pessoas que estavam mais distantes mostravam curiosidade, vontade de se aproximar. As mais próximas mostravam que as pessoas queriam se afastar. Luzes fortes e fracas, coloridas e pálidas. Logo o coro de luzes voltou a iluminar os olhos fechados de Erasmo com uma insuportável sinfonia silenciosa de cores e imagens. O único ruído audível era o do seu próprio coração.
Com um golpe violento o mendigo desvencilhou-se do homem (que já não o prendia) e correu com toda a força que suas velhas pernas permitiam.
Passou pelo carrinho de rodas de bicicleta, atravessou o estacionamento trombando em arvorezinhas e pedestres incautos, subiu escadas, pulou muretas, derrubou bancas de flores, espantou folhas de jornais que esvoaçaram em alvoroço junto aos pombos.
Correu o quanto pode. Subiu a ladeira. Atravessou ruas e avenidas, praças e parques, de modo que só parou de correr depois de muito tempo, quando já escurecia. Parou ofegante, em frente à estátua de uma mulher nua que derramava água de um vaso. “Uma água que sem fim”. Olhou para a estátua (com medo de que ela também o enxotasse dali com possíveis luzes cor-de-mármore) e ficou esperando. Levou algum tempo para perceber que, além do próprio coração, podia ouvir também o burburinho da água que caía.
Logo descobriu que aquela estátua era a única coisa no mundo com a quem ele podia conversar. Ela contava-lhe histórias de tempos idos, não com a voz de luz, mas com voz de gente, com palavras. Ele narrava as suas aventuras e contava confidências ao pé do ouvido. Com o tempo, aprendeu que conseguia compreender as palavras de qualquer coisa que emitisse luz, embora só as palavras daquela estátua atraiam-no. Apaixonaram-se como se apaixonam as pessoas de carne. Junto dela ele aprendeu a amar e a cantar.
Assim Erasmo terminou seus dias, tendo aquela estátua como companheira. Pessoas de muito longe vinham à praça para assistir aquele espetáculo que era Erasmo declamando poemas e cantando canções antigas, trepado num caixote de feira que servia de palanque. Quem gostava costumava retribuir com trocados, sorrisos e exclamações luminosas que saiam de suas bocas e se misturavam com a alegria dos anúncios eletrônicos e as incertezas dos semáforos. Mas, para além dos edifícios, Erasmo sabia que as próprias estrelas escutavam-no admiradas. Era o que lhe afirmavam aquelas pequenas luzes que brilhavam no céu.



2 comentários:

  1. Grande texto, meu caro, grande texto!
    Bem narrado, criativo, com sacadas muito boas!

    Eu só tiraria isto, se me permite a sugestão: (aquela a que os alquimistas se referiam).
    Acho que não colabora pra unidade da coisa toda.

    Abrazz!
    André

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  2. Ilustre amigo símio doutorando, suas sugestões são sempre permitidas e bem vindas. E necessárias!

    Abraços!

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