sexta-feira, 29 de julho de 2011

Vereadores: nove ou onze?

O voz do povo é a voz de Deus!
Sistema preferido pelo barbosense:

Sistema ideal para poupar dinheiro

Vamos instaurar uma monarquia absolutista!
"Economizo, logo existo!"


Eu ri...


Embriaguez

São pingos
Gotas de chuva
     Pouca
Molhando a tua
     Roupa


terça-feira, 26 de julho de 2011

Sintomas

Haverá prazeres que superem esta dor de cabeça?
Chego a ficar tonto - de dor e de nojo,
E novamente me vejo perseguindo insônias
(que você não vê)
Enquanto, cego, tento ler as quatro linhas do meu horóscopo
- Um telescópio buscando o passado.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

Aula de história

Sentados
Ouvimos
Sentenças
- Silenciosas reticências... 



 

Crônica policial

Um caco de vidro em lua
Corta o pulso
E um pensamento impuro
Deixa a alma nua
Numa madrugada crua de agosto.


 

Canteiro com flores na Praça Gen. Osório

Não!
Estas poucas flores
Não estão balançando ao sabor do vento.
Estão dançando ao som da cidade,
- Cheias de si
E de maldade.


 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Inércia

Mas meu limite é olhar para esse céu azul,
aquela nuvem branca e coisas assim...
Limito-me a contemplar pernas e saias que passam,
que saem dos seus eixos
infestando faixas de insegurança.
Limito-me a degustar o calor de um verão
numa versão fora de época.
A imitar os outros,
a comemorar, sorrir, chorar...
a contar os dias que passam e
passar os anos calado
(embora pensamentos não se calam). 
 ....................................................
Um pensamento assombra o banco da praça:
Estou vivo!
Enquanto eu, sentado, seguro os meus joelhos.


Idas e vindas

Quisera criar um mundo novo,
vivo, viçoso - porém movediço
e surpreendentemente mudo.
Silencioso como o túnel que nos leva à vida
(aquele refúgio divino e banal)
que em dois tempos nos trai e nos joga ao mar.

Mas qual! Isso não é nada! E o mar...
Lágrimas também são água e sal!
São crianças que nascem sem chorar,
que rolam pelas faces e acabam rendidas ao travesseiro
- aquele outro mundo-
aquele quase lar.





terça-feira, 12 de julho de 2011

O pai a vapor

Seu Antônio chegou ninguém sabe de onde e instalou-se ao pé do pequeno morro, não do lado onde passava a estrada de terra (que descia em direção à Capital), mas do outro.
Construiu a sua casa e constituiu família, trabalhando como agricultor, na base da pequena elevação de terra que o protegia (acreditava ele) do Minuano.
O tempo passou. Antônio assistiu ao nascimento de uma filha e ao desaparecimento da pequena elevação de terra, que fora removida para dar lugar à linha férrea, construída entre a sua casa e a estrada.
Em pouco tempo o lugar paradisíaco que Seu Antônio escolhera para morar havia se transformado num bonito e movimentado vilarejo, que continha até uma plataforma de embarque. Plataforma instalada bem em frente à casa de Antônio que, ao contrário da reação que teríamos hoje, ficou muito feliz por ter sua propriedade tão bem posicionada e valorizada. “Fiz uma boa escolha”, pensava ele toda a quarta-feira, quando o trem passava pelo vilarejo, enquanto olhava a beleza das pessoas e das coisas ao seu redor.
Um pássaro que voasse no sentido leste-oeste, ao olhar para o chão veria, nesta ordem: a estrada de terra que descia a serra em direção à Capital, uma linha férrea que ladeava a estrada até o vilarejo, uma belíssima plataforma de embarque (que, inclusive, contava com casinhas para abrigar os pombos famintos), uma pequena rua cuidadosamente pavimentada e, por último, a casa de Antônio (tudo minuciosamente alinhado, disposto em linhas paralelas). Mas o que realmente encantava o olhar dos pássaros era a plantação de milho de Seu Antônio, situada atrás de sua casa. Encantava, não tanto pela abundância de sementes, mas principalmente pelo formato triangular da propriedade. As terras de Seu Antônio tinham o formato perfeito de um triângulo equilátero. Essa peculiaridade devia-se ao fato de que a propriedade era cuidadosamente (e literalmente) cercada pelos trilhos do trem. Tal triângulo ferroviário era o recurso utilizado na época para “manobrar” a locomotiva a vapor, quer dizer, colocá-la na direção oposta a que estava anteriormente, de modo que pudesse retornar pelo mesmo caminho por onde viera. E funcionava assim: A locomotiva chegava ao vilarejo e parava na plataforma e, enquanto os passageiros subiam e desciam dos carros, o maquinista desconectava-a dos vagões e a fazia seguir em frente até ultrapassar o primeiro vértice. Em seguida, em marcha à ré, seguia pela segunda face do triângulo até o próximo vértice, quando a locomotiva tornava a andar para a frente até encontrar a terceira face do triângulo, onde voltava a conectar-se com os vagões, desta vez na outra extremidade do conjunto de carros, estando, desta forma, pronta para retornar pelo mesmo caminho.
De fato, o trem não “passava” pelo vilarejo. Apenas tocava-o para depois retornar.
Depois de executar tantas tarefas pesadas, o maquinista tinha direito a um merecido descanso antes de seguir viagem. Uma pausa de dez minutos. Descansava invariavelmente encostado à parede da casa de Seu Antônio, ao lado de uma janela com floreira por onde Anita, filha de Antônio, servia ao maquinista saborosas xícaras de café.
Não demorou para o pai de Anita perceber que eles poderiam estar apaixonados e que,  por causa disso, deveria ter uma conversa com o possível pretendente.

- Olá! Disse Seu Antônio.
- Olá.
- Não estaria na hora de o senhor ir até a locomotiva liberar o excesso de vapor?
- Ah, não, Seu Antônio. Nesta semana a Companhia instalou uma válvula automática que libera o vapor excedente automaticamente. É uma joia!

Na semana seguinte o trem tornou a visitar o vilarejo. Todo o procedimento se repetiu e o condutor foi (como sempre) até a janela degustar o café de Anita. Convencido de que deveria dar um jeito naquela questão, Seu Antônio foi novamente ter com o maquinista:

- Olá!
- Olá!
- Não estaria na hora de o senhor ir até a locomotiva e fazer soar o apito para avisar os passageiros que o trem está para partir?
- Ah, não, Seu Antônio. Ontem a Companhia acabou de instalar outro dispositivo automático, uma espécie de relógio que faz com o que apito soe automaticamente no horário exato da partida. Uma joia!

Na semana seguinte, Antônio continuou a observar o maquinista, que desta vez descera da locomotiva antes de executar as manobras costumeiras, e dirigira-se direto à janela onde a bela moça já o aguardava com o café. Seu Antônio já o esperava para a prosa costumeira.

- Olá!
- Olá! Respondeu o maquinista.
- Será que, por causa do saboroso café de minha filha, o senhor não se esqueceu de manobrar a locomotiva, como de costume?
- Ah, não, Seu Antônio. A Companhia acabou de instalar um complexo mecanismo e um conjunto de alavancas nos trilhos que permitem que a locomotiva execute esse trabalho automaticamente.

E os três ficaram observando a grande máquina fumegante que, sem qualquer auxílio humano, soltara-se dos carros, percorrera o triângulo e voltara a conectar-se na outra extremidade do comboio. Depois do espetáculo os homens voltaram a conversar.

- Uma joia! Disse o maquinista. Daqui a alguns minutos ela, sozinha, dará o apito da partida e eu saberei que é hora de ir embora. Se eu não tomar cuidado ela parte sem mim.
- Pelo visto, em breve a Companhia não vai precisar mais de maquinistas.
- Na verdade já não precisa, ela só necessita de alguém para abastecer o reboque com lenha e carvão, acender a fornalha da locomotiva e fazer a limpeza da caldeira no final do dia.
- Vejo que não tenho saída. Então... será que não está na hora de o senhor ir até o meu machado, abastecer a minha caixa de lenha e acender o fogão para o nosso almoço?

Assim o maquinista casou-se com a filha do Seu Antônio. Passou a trabalhar numa pequena fábrica de panelas, operando as máquinas a vapor que impulsionavam as lixadeiras. Logo construiu uma casinha em seu próprio triângulo de terra que, rumando com a propriedade de seu sogro, fazia com que a terra de ambos constituísse um bonito losango.
Foi uma boa escolha”, pensou Antônio, enquanto produzia fumaça com seu cachimbo.

*
*          *

Bem, é chegada a hora de pedir desculpas ao leitor porque até o presente momento o fizemos acreditar que o protagonista desta história fosse Seu Antônio. Mas não. Creiam ou não, nossa personagem principal é a própria locomotiva. E se até agora não lhe demos um nome é porque acreditamos que também ela não passe de mais uma personagem plana, como Seu Antônio, Anita ou o maquinista. Ademais, a singularidade da personagem dispensa o uso de um nome.
O fato é que o tempo foi passando e a locomotiva foi sofrendo modificações. As constantes melhorias e atualizações promovidas pelo Companhia logo possibilitaram que a locomotiva trabalhasse por conta própria. Em pouco tempo ela estava de posse de inteligência e vontade própria. Aprendeu a ouvir e a falar. Deixou de ser um equipamento com preço e proprietário para, através de um longo processo judicial, ganhar a sua liberdade. Deixou de ser escrava para tornar-se sócia da Companhia.
As pessoas gostavam de viajar nela. Os mais íntimos conversavam, trocavam conselhos e confidências, dicas de amor, culinária, calúnias e canções típicas. Ela era o orgulho da comunidade.
Houve festa no dia em que ela recebeu uma importante modificação patrocinada pelo Tigers Club local: um conjunto de pneumáticos e sistema de direção. Daquele dia em diante ela poderia andar em qualquer local. Não estaria mais limitada aos trilhos.
Agora a locomotiva frequentava festas, ia à igreja, reuniões de partidos, jogos de futebol, enfim, tudo o que um cidadão normal poderia fazer. Inclusive acessar a Previdência Social.
Aposentou-se e, de repente, numa manhã em que degustava um novo tipo de carvão mineral de ação prolongada, sentiu-se inundada por uma sensação diferente e, até certo ponto, atormentadora. Percebeu que talvez fosse incapaz de morrer.
Lembrou-se dos funerais de Seu Antônio, Dona Anita, e do seu amigo maquinista. Lembrou-se também de pessoas ilustres que já partiram. Estavam mortos há muitos anos e pensou que talvez devesse levar-lhes flores no cemitério. A locomotiva, materialista que era (e sabedora de sua origem mecânica), não estava bem certa de que a vida continuava do outro lado, apesar de ser uma assídua frequentadora da Igreja.
Ela percebeu, então, que jamais poderia amar alguém a ponto de ter filhos. Costumava assistir prazerosa aos adeus e despedidas de famílias inteiras nas plataformas de embarques, e sabia que, por mais tecnologia que incorporasse, jamais teria o privilégio humano de ter uma família para abraçar, rir e chorar, ou deixar heranças, conforme fosse o caso.
Diante disso, ela própria determinou que sua família seria o próprio povo do vilarejo. E ela não estava de todo enganada. Aquela gente era, de algum modo, uma espécie de família que ela ajudou a construir. Decidiu que aqueles habitantes seriam, a partir daquele dia, seus próprios filhos e filhas.
Pensou em como avisar as pessoas sobre isso e concluiu que a melhor forma de se mostrar (ou de agir) como pai e mãe daquele povo seria colocando-se numa posição em que pudesse exercer liderança (tal qual um pai) e oferecer conforto (como uma mãe). Candidatou-se à prefeitura local.
Depois de uma breve disputa com a oposição (“aquela gente que vem de fora pra mudar nosso jeito de falar” – diziam as pessoas) ficou acordado, por vontade geral da população, que ela (a máquina) teria o direito a candidatar-se até mesmo ao cargo de Bispo, se o desejasse. Candidatou-se e, como o previsto, elegeu-se prefeito municipal. Naquela ocasião mandou construir uma outra locomotiva, parecida com ela mesma, que continuaria a visitar o vilarejo e alegrar os moradores e visitantes, muito embora não fosse permitido que aquela réplica tivesse dispositivos automáticos.
Ainda hoje, passados muitos anos, aquela máquina detém o poder na região, embora não se admita mais locomotivas nos cargos públicos. Na verdade, aquela gente que ela considerou seus filhos cresceu e, hoje, poucos sabem que aquela máquina existiu e ainda existe. Atualmente ela continua a governar a região com mão de ferro (literalmente), escondida no seu galpão, soltando baforadas do seu belo cachimbo. Ela é, agora, uma espécie de poder oculto, que governa não só a coisa pública às escondidas, mas também boa parte das das maiores empresas privadas da região, embora a maioria das pessoas prefira acreditar que são governadas por representantes legitimamente eleitos. Parece que o povo do vilarejo não precisa mais de um grande pai comum e, por isso, a locomotiva passa os seus dias trancada no seu galpão, angustiada e deprimida, dando ordens aos seus correligionários (eleitos ou não) e tendo sonhos suicidas em que o antigo maquinista substitui o carvão de sua fornalha por gelo e neve.
 
Mal sabia Seu Antônio que no futuro o seu vilarejo seria todo cercado por trilhos de trem, que as propriedades seriam todas limitadas por infinitas conexões ferroviárias e que as próprias pessoas passariam a estar ligadas por trilhos invisíveis controlados por aquela engenhoca maravilhosa que manobrava e apitava automaticamente em frente a sua casa. Mal sabia Seu Antônio, na sua inocente boa vontade, que somente os pássaros que sobrevoavam a estação férrea estariam livres daqueles terríveis trilhos.

terça-feira, 5 de julho de 2011

A voz do Sol

Erasmo, o catador de latinhas, costumava deleitar-se olhando as estrelas e adivinhando mundos desconhecidos. Gostava de acreditar que, em algum lugar lá em cima, pessoas como ele também estariam contemplando o céu e adivinhando mundos; e ria quando imaginava que pudesse existir um outro Erasmo, catador de latinhas, morando numa daquelas estrelas e levando uma vida igual a dele, como se o universo fosse um grande lago, onde a parte de baixo fosse o reflexo da parte de cima.
Na verdade, Erasmo só parava de pensar nessas coisas quando sentia a necessidade de pensar em como sobreviver. Numa dessas ocasiões ouviu alguns amigos afirmarem que na universidade as pessoas bebiam muita Coca-Cola, tratando-se, portanto, de um mercado inexplorado. Além disso, ouviu dizer que lá não havia concorrência na catação das latas e que as lixeiras costumavam ser limpas, contendo, no máximo (além das latinhas) papel e embalagens de cigarros vazias. Não precisaria, portanto, sujar as mãos em lixeiras ancestrais que poderiam conter, talvez, até a própria matéria primordial (aquela a que os alquimistas se referiam) usada por Deus para fazer as estrelas.
Não demorou a entrar em ação. Catou seus sacos e seu carrinho com rodas tortas de bicicletas órfãs e desceu a ladeira em direção ao campus (sempre que ouvia alguém pronunciar essa palavra, lembrava do cemitério. Tinha a imprecisa certeza de que, há muitos anos, ouvira alguém chamar o cemitério de campo, ou campus, ou algo assim, santo).
Lembrava-se da sua infância enquanto descia a ladeira suavemente. Pensava nos mortos que já vira entrar no cemitério, transportados em carrinhos semelhantes ao seu. Imaginou-se descendo a ladeira com um carrinho daqueles, carregando um defunto. Depois, vislumbrou-se no caixão, sendo conduzido ladeira abaixo pela estátua nua da praça. Riu.

A universidade, no domingo, era pouco movimentada. Logo que chegou, Erasmo tratou imediatamente de procurar pelas lixeiras de plástico afim de localizar o precioso material. Na verdade havia muitas lixeiras, mais do que no centro da cidade. Mas havia poucas latinhas. Talvez o caminhão do lixo houvesse passado antes dele, na sexta ou no sábado.
Estando longe da sua casa, decidiu ficar por ali, até segunda ou terça-feira. Fez o que sabia fazer: sentou-se num canto de modo a não incomodar ninguém (sobretudo os homens de azul que já lançavam olhares escorregadios) e cobriu-se com uns trapos. Ficou ali, entregue às estrelas que ele tanto conhecia e admirava.
Dormiu e acordou na segunda-feira, já perto da hora do almoço. Retirou de uma de suas sacolas plásticas a refeição previamente preparada por sua irmã, que deveria estar pelas bandas da linha férrea, onde havia fábricas e muitas caixas de papelão. Ambos sabiam que era preciso explorar lugares novos (que seriam, necessariamente, encontrados debaixo deste sol), e que isso poderia demorar um tempo. De qualquer forma, sabia que ela conseguia mais dinheiro prestando serviços aos operários na saída das fábricas do que catando papel. Mas isso não o incomodava. Havia comida para mais de um dia (se fosse preciso) e água nunca lhe faltava. Ele a buscava numa torneira qualquer. Erasmo sabia que onde havia um gramado bem cuidado havia uma torneira. Como no cemitério. Por precaução sempre trazia uma garrafa presa na lateral do carrinho, a qual aproveitava para abastecer sempre que encontrava uma torneira à deriva.
No campus, tinha medo de se aproximar do lugar onde havia mais pessoas. Ele sabia que não era bem-vindo nesses espaços com gente diferente comendo em mesinhas redondas colocadas em grandes espaços coletivos. Ao mesmo tempo tinha a impressão de que essa gente diferente também tinha medo dele. Mesmo assim, a universidade passou a fazer parte do roteiro de Erasmo, que a visitava de tempos em tempos, mais pela facilidade em descer a ladeira do que pela quantidade de alumínio coletado.

De fato já havia percebido que ali, diferente do que ouvira falar, as pessoas não consumiam tanta Coca-Cola. Não mais do que em qualquer outro lugar e até menos do que na estação rodoviária. Entretanto, uma coisa era certa: não havia concorrência. Erasmo, até agora, era o único catador de latinhas a se aproximar do campus, se bem que ele próprio reconhecia que jamais se aproximara dos locais onde circulavam os homens de azul. Sabia, ou melhor, sentia que aqueles homens não permitiriam que ele se aproximasse demais. Para não perder a viagem, limitava-se a coletar as escassas latinhas depositadas nas lixeiras do estacionamento. Sempre nos horários de menos movimentação. Nunca aos domingos. O caminhão não deixava nada para os domingos.

***

Certo dia, posterior à noite em que trocaram a água de sua garrafa por cachaça, Erasmo amanheceu cheio de coragem e enveredou em direção à praça de alimentação do campus. Sem medo e sem documentos. Quando percebeu que um dos seguranças corria em sua direção, abandonou o carrinho e, munido apenas de uma sacola, pôs-se a correr também. Sabia que não chegaria até as lixeiras e, por isso mesmo, já antecipava o momento em que  o homem de azul chegaria para xingar a sua mãe de puta e arrastá-lo para fora dali. Mas seguiu, corajoso.
Conforme o previsto, sentiu o homem chegar e segurar seu braço fazendo-o parar. Mas não ouviu o xingamento, pois quando o segurança abriu a boca, ao invés de impropérios e saliva, saíram apenas raios de luz. Muita luz, como o farol de uma motocicleta que estava prestes a atropelá-lo. Olhou ao redor e, iniciado o tumulto, percebeu que as demais pessoas também emitiam luz pela boca no lugar de palavras. E as luzes saiam e iluminavam lixeiras, paredes, chão, vitrines, e os rostos pálidos das outras pessoas, projetando sombras e imagens. Imagens às vezes sujas e feias, às vezes complacentes. Imagens indignadas e indignantes nas quais, muitas vezes, ele se reconhecia.
As pessoas não pronunciavam palavras -- projetavam imagens.
No momento em que Erasmo não pôde mais suportar o medo e gritou, todas as luzes de todas as bocas se apagaram. Ouviu, então, o seu próprio coração e não pôde deixar de sentir um cheiro que o fazia lembrar-se de um livrinho de alquimia que encontrara, há anos, na lixeira de perto da igreja. Cheiro de livro antigo que o padre velho recolhera do inocente coroinha e atirara ao lixo com repulsa. Era o cheiro da roupa do homem de azul que o prendia pelo braço.
Antes de ser também ele jogado para fora dali, Erasmo pensou em justificar-se (afinal, não queria incomodar ninguém) dizendo que precisava de latas de alumínio para vender na cooperativa de reciclagem. Achou também que deveria pronunciar a palavra “desenvolvimentossustentável” (cujo significado ele desconhecia, mas que fascinava as pessoas instruídas). Com um esforço gaguejante, abriu a boca que tremia de medo e pronunciou o primeiro fonema. O segundo. O terceiro. Pronunciou a primeira palavra. A segunda. Parou.
Ninguém parecia compreender o que ele queria dizer. A multidão se entreolhou e, pouco a pouco, pequenos fachos de luz voltaram a sair das bocas das pessoas. O coletor de latinhas fechou os olhos antevendo o conforto de um desmaio, mas não houve escuridão. Mesmo de olhos fechados Erasmo conseguia ver os pequenos raios luminosos que saiam das bocas.
Assim, de olhos fechados, ele ficou observando as imagens que as pessoas diziam dele. Uma luz mostrava que a pessoa que a emitiu estava com medo. Outra mostrava angústia. As luzes das pessoas que estavam mais distantes mostravam curiosidade, vontade de se aproximar. As mais próximas mostravam que as pessoas queriam se afastar. Luzes fortes e fracas, coloridas e pálidas. Logo o coro de luzes voltou a iluminar os olhos fechados de Erasmo com uma insuportável sinfonia silenciosa de cores e imagens. O único ruído audível era o do seu próprio coração.
Com um golpe violento o mendigo desvencilhou-se do homem (que já não o prendia) e correu com toda a força que suas velhas pernas permitiam.
Passou pelo carrinho de rodas de bicicleta, atravessou o estacionamento trombando em arvorezinhas e pedestres incautos, subiu escadas, pulou muretas, derrubou bancas de flores, espantou folhas de jornais que esvoaçaram em alvoroço junto aos pombos.
Correu o quanto pode. Subiu a ladeira. Atravessou ruas e avenidas, praças e parques, de modo que só parou de correr depois de muito tempo, quando já escurecia. Parou ofegante, em frente à estátua de uma mulher nua que derramava água de um vaso. “Uma água que sem fim”. Olhou para a estátua (com medo de que ela também o enxotasse dali com possíveis luzes cor-de-mármore) e ficou esperando. Levou algum tempo para perceber que, além do próprio coração, podia ouvir também o burburinho da água que caía.
Logo descobriu que aquela estátua era a única coisa no mundo com a quem ele podia conversar. Ela contava-lhe histórias de tempos idos, não com a voz de luz, mas com voz de gente, com palavras. Ele narrava as suas aventuras e contava confidências ao pé do ouvido. Com o tempo, aprendeu que conseguia compreender as palavras de qualquer coisa que emitisse luz, embora só as palavras daquela estátua atraiam-no. Apaixonaram-se como se apaixonam as pessoas de carne. Junto dela ele aprendeu a amar e a cantar.
Assim Erasmo terminou seus dias, tendo aquela estátua como companheira. Pessoas de muito longe vinham à praça para assistir aquele espetáculo que era Erasmo declamando poemas e cantando canções antigas, trepado num caixote de feira que servia de palanque. Quem gostava costumava retribuir com trocados, sorrisos e exclamações luminosas que saiam de suas bocas e se misturavam com a alegria dos anúncios eletrônicos e as incertezas dos semáforos. Mas, para além dos edifícios, Erasmo sabia que as próprias estrelas escutavam-no admiradas. Era o que lhe afirmavam aquelas pequenas luzes que brilhavam no céu.