segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Das polaridades do velcro

A epopeia de um consumidor que só queria ouvir seus discos

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-- Provavelmente é um problema com o seu CD, senhor...
-- Mas eu ouço esse CD no carro, no PC. Por que o problema seria com o meu CD?
-- É que esse CD é muito antigo, senhor. Provavelmente é algum formato desconhecido pelo leitor...
-- CD muito antigo (sic)? Formato desconhecido?

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Resumindo: atualmente, sempre que quero ouvir meus CDs favoritos, preparo pacientemente uma cuia de chimarrão, respiro fundo e dirijo-me à garagem onde sento-me confortavelmente no banco dianteiro direito do meu carro. É o único lugar onde ainda consigo ouvir meus discos com uma qualidade que não provoca náuseas e um certo conforto. A vista lateral constitui-se de uma prateleira bagunçada com ferramentas, espetos para churrasco e todo o tipo de coisa cortante, perfurante e enferrujada que possa causar tétano. À minha frente há uma parede nua. Do outro lado estão duas bicicletas empoeiradas e com os pneus vazios. Ouço meus CDs num poderoso (risos) Pioneer DEH-546 dos anos 90 (quase tão antigo quanto meus CDs favoritos) que iria parar no lixo por causa de um probleminha no visor. Sim, eu salvo coisas que iriam para o lixo. Sou pobre, claro.

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Há muito tempo venho defendendo que há uma estupefação generalizada com a tecnologia. Uma glorificação da mesma. Há pessoas que idolatram o MP15! Outras passam boa parte do seu dia realmente preocupadas com questões filosóficas do tipo: qual é a diferença entre uma TV de plasma e uma LCD? Entre HD e Full HD? Entre Dual Core e Quad Core? E não são os vendedores. Aliás, os vendedores são, em geral, os que menos se preocupam com isso, talvez por intuírem a essência de todo esse imbróglio. Os vendedores dominarão o mundo!

É claro que a tecnologia existe para nos servir. Nada melhor do que saber que seu DVD novinho, que você acabou de pagar, em breve será brutalmente substituído pela nova onda do momento: o novíssimo e poderosíssimo blu-ray (com direito a erro de ortografia). Por que raios essa merda não se chama blue-ray? Peço ajuda aos universitários? Enfim, quando finalmente conseguirmos comprar essa merda, ela será obsoleta. A tecnologia existe para nos servir, repito. Para que possamos desfrutar de momentos agradáveis com a família assistindo a um bom filme, etc. Sem dúvida. Não tente duvidar disso publicamente.

A tecnologia sempre avança, porque é ela quem nos serve, certo? Vejamos: No século passado, na era dos vídeos cassetes, chegou a existir (ou ainda existe, não sei) um tal de HD VHS. Aquilo era (ou é) um formato de vídeo  que conseguia armazenar filmes em resoluções altíssimas em fitas VHS (aquelas fitas enormes de vídeo cassete que todos acham engraçadas). Legal, né? Antiquadas fitas VHS podiam armazenar filmes com resolução superior a qualquer DVD. Só voltamos a atingir aquela resolução (em meios domésticos) recentemente, com o blu-ray escrito errado e HDTV. É a mesma ladainha com o vinil x CD. 

O consumo precisa crescer sempre (que novidade!). O mundo pode acabar se as pessoas pararem de consumir trecos e troços eletrônicos, e o fato desses trecos e troços existirem não significa que eles sejam necessariamente melhores ou mais acessíveis do que o troço que existia antes. Significa apenas que nós temos que tomar bem no cu e começar agora mesmo a guardar grana para comprar esse novo treco se quisermos assistir aos lançamentos da Disney quando ficarmos velhinhos.

O consumo precisa crescer e nós devemos comprar o MP15 porque, afinal de contas, ele veio depois do MP14 e, portanto, deve ser "melhor". Além do mais está na promoção. Você ainda ouve MP3 no ônibus, seu alienado? De que planeta você veio? 

O consumo precisa crescer para que computadores velhos sejam doados às nossas escolas e bibliotecas.

O consumo precisa crescer e meus filhos servirão para me lembrar disso. Se não fossem nossas crianças estaríamos ainda vivendo como no tempo das cavernas, usando fechos de velcro, dando pauladas na cabeça das nossas mulheres e saindo com a do vizinho. O consumo precisa crescer para que a tecnologia avance sempre, rumo ao futuro, porque sem consumo e sem tecnologia não teríamos comida enlatada e tampouco chiclete. Levaríamos horas para ir a Garibaldi e jamais saberíamos que os cubanos estão fodidos. Não teríamos como aquecer o leite em 30 segundos. Sequer saberíamos o que são 30 segundos. 

Não saberíamos os nomes das constelações e, por isso, não teríamos horóscopo.

O consumo e sua filha, a tecnologia, existem para que possamos assistir ao Faustão em alta definição de som e imagem. Dessa forma podemos descansar melhor no domingo e, na segunda-feira, trabalhar mais para continuar consumindo e dar continuidade ao movimento dessa roda maravilhosa que nos traz tantos prazeres e nos alivia de tanta dor e sofrimento. 

E que ninguém se questione sobre como o avião consegue voar. Ele voa como voam os anjos. Iremos nós, mortais, perscrutar os desígnios do Criador? Iremos nós questionar aquilo que nos engrandece? 

Vou guardar uma graninha e comprar o meu blu-ray bem quietinho. E não há erro ortográfico (só implicância minha). E se ele não reproduzir meus CDs favoritos não tem problema: a culpa é minha. Além disso posso adaptar o velho Pioneer do carro ao som da minha sala através da magia da fita isolante. Ele será, novemente, um pioneiro.

Um comentário:

  1. E vivas ao capitalismo!
    Passaremos a vida toda comprando coisas que em pouco tempo estarão sendo consideradas velharias, e com isso um dia seremos considerados "componentes" de um país de Primeiro Mundo (?), será?

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